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quinta-feira, 5 de junho de 2014

Uísques ingleses tentam retomar tradições perdidas para os escoceses

"Podemos ser mais experimentais porque somos novos. Presumem que é preciso ir para a Escócia para aprender a fazer uísque. Bobagem", diz David Fitt, mestre destilador da English Whisky Company, de Norfolk

Tom Jamieson/The New York Times
O mestre destilador David Fitt inspeciona fábrica da English Whisky Company, em Roudham
Feito com cevada de agricultura familiar e com água de um poço artesiano, o uísque single malt com leve sabor de nozes produzido por uma pequena destilaria pode custar mais do que produtos similares de Glenmorangie ou de Glenlivet. Envelhecido por pelo menos três anos em barris de bourbon, ele é distribuído mundo afora, para China, EUA, Rússia e Suécia. Mas o uísque não é escocês, e sim inglês.
Sediada em um campo exuberante a aproximadamente 480 quilômetros da fronteira com a Escócia, a English Whisky Company, em Norfolk, é parte do ressurgimento das destilarias locais que estão recuperando – e reinventando – a tradição que foi perdida há mais de cem anos.
Estimulado pelo surgimento de pequenos produtores de alimentos e de bebidas, o renascimento cresceu lentamente, porém, continuamente, desde que as primeiras garrafas foram à venda em 2009. Existem hoje pelo menos quatro destilarias de uísque inglês em operação, e o interesse está aumentando.
"Há rumores de que exista uma em cada município", observa Andrew Nelstrop, diretor executivo da English Whisky Company. "A cada duas semanas, alguém me liga dizendo que está pensando em abrir uma destilaria e perguntando se pode visitar a nossa." Tão grande é o interesse que cerca de 40 mil pessoas anualmente vão ao centro de visitantes da região. Esse turismo é um negócio lucrativo em si, segundo Nelstrop.
Nos padrões escoceses, a indústria do uísque inglês é pequena. No ano passado, a English Whisky Co. vendeu cerca de 60 mil garrafas de uísque. As destilarias escocesas – e existem mais de cem delas – exportaram 2,13 bilhões de garrafas e venderam mais 87,5 milhões de garrafas na Grã-Bretanha.
Mas a English Whisky Co. informa que está tendo um pequeno impulso do movimento escocês pela independência, uma questão que entrará em votação em setembro. "Existe um leve orgulho íntimo em nossa nação. Se a Escócia decidir pela independência, veremos esse orgulho crescer", explica Nelstrop. 
"Quanto mais agitação de bandeiras houver, mais esse é o caso", ele acrescentou, referindo-se à campanha do plebiscito em andamento na Escócia. Segundo ele, a votação iminente só pode ajudar a fomentar a procura pelo uísque inglês.
Tom Jamieson/The New York Times
Uma garrafa do The Founders Cellar
Até hoje, existem poucos sinais de animosidade do consumidor em relação aos produtos escoceses na Inglaterra, e a indústria do uísque escocês está tão bem estabelecida globalmente que é improvável que perca sua participação significativa por causa de uma questão política. Mas o sucesso da English Whisky Co. indica que, se os escoceses votarem pela independência, pode haver potencial comercial em relação à promoção inglesa de uma série de produtos culinários para concorrer com os que vêm da Escócia.
Embora a Inglaterra nunca tenha tido a mesma tradição de produção de uísque que a Escócia, havia aqui quatro destilarias de grãos no final do século 19. Em um livro publicado em 1887, "The Whisky Distilleries of the United Kingdom" ("As Destilarias de Uísque do Reino Unido", em tradução livre, não publicado no Brasil), Alfred Barnard apontou que a Destilaria Bristol, com sua produção anual de 2,4 milhões de litros, chegava a enviar aguardente à Escócia e à Irlanda para produção de uísque.
Porém, por volta do final da década de 1880, a Escócia havia se tornado a pioneira do uísque blended – uma mistura de uísques leves de grãos e uísques com malte aromatizado que era destinado ao gosto geral, segundo Charles MacLean, especialista e historiador do uísque.
MacLean explica que isso se tornou muito popular na Inglaterra na década seguinte, ajudando a derrubar as poucas destilarias de uísque inglês. A Destilaria Lea Valley em Londres, geralmente tida como a última na Inglaterra, fechou as portas por volta de 1903.
Mais de um século depois, a destilaria de Norfolk enfatiza o caráter inglês de seu produto, embora a palavra "Scotch" permaneça sendo o nome popular para o uísque (e a ortografia mais comum é "whisky", embora "whiskey" seja a mais usada para as versões americanas e irlandesas). Adornada no rótulo de cada garrafa, temos uma imagem do santo padroeiro da Inglaterra, São Jorge, matando o dragão.
A destilaria produz dois tipos principais de uísque single malt, um turfado e o outro não. Ela também produz um single malt especificamente para o varejista britânico Marks & Spencer, descrito em notas de prova como "fresco e perfumado, doce, suave e levemente picante". Fortalecendo a sua criação da marca inglesa, lançou produtos especiais como uma edição limitada de 1.850 garrafas em comemoração aos 60 anos da coroação da Rainha Elizabeth II em 2013.
Tom Jamieson/The New York Times
David Fitt
Há tempos, a ideia de produzir uísque tinha sido um sonho do pai de Nelstrop, James, um fazendeiro. "Ele dizia que era 'era loucura a cevada ter de ir para a Escócia para voltar como algo útil'." Dado o número de nações produtoras de uísque, o estranho é que a Inglaterra não esteja entre elas, completa o diretor.
Um ingrediente principal é a cevada, que cresce nessa região e é fornecida à English Whisky Co. por uma fazenda administrada pelos primos de Nelstrop, a aproximadamente 129 quilômetros de distância. A outra principal exigência é a água, que é abastecida abundantemente através de um poço artesiano.
Como uma destilaria relativamente nova, a English Whisky Co. não está tentando bater de frente com os atores estabelecidos da Escócia, alguns dos quais vendem uísques que são envelhecidos durante décadas. Ela abriu em 2006 e começou a comercializar em 2009. Na Cornualha, a cervejaria St. Austell e a Healey's Cornish Cyder Farm produziram um uísque maltado em 2003, embora a bebida não tenha sido comercializada até 2011, quando tinha passado pelo processo de envelhecimento.
Mas David Fitt, o principal destilador da English Whisky Co., que começou a sua carreira como fabricante de cerveja, afirma que, como uma empresa pequena e particular, ela tem a liberdade de inovar com diferentes métodos. Embora a maioria do uísque seja envelhecido nos barris de bourbon, ele às vezes usa os de vinho – porto ou xerez. "Podemos ser mais experimentais porque somos novos. Não tínhamos nada a perder porque não temos 200 anos de tradição, não havia tradição por aqui. Todos presumem que é preciso ir à Escócia para aprender a fazer uísque. Bobagem."
A Associação Escocesa do Uísque, que representa o setor na Escócia, afirma receber com prazer as novas destilarias em todas as partes do mundo porque essas aumentam o interesse no produto. "Isso está atraindo novos consumidores para a categoria", explica David Williamson, o porta-voz da associação. "Se novos consumidores estão experimentando uísques diferentes independentemente de onde eles sejam produzidos, isso só pode ser algo positivo para a indústria do uísque escocês."
Williamson diz que o uísque escocês é "indubitavelmente o melhor do mundo". Porém, reconhece que ainda precisa experimentar a versão inglesa. Marks & Spencer, que vende o produto da English Whisky Co. por 35 libras esterlinas, ou cerca de R$ 133, por uma garrafa de 700 ml, afirma que ele está "atualmente vendendo mais que o uísque irlandês premium e tanto quanto o uísque maltado escocês bem estabelecido que vendemos por preço equivalente".
"A destilaria de uísque inglês de Nelstrop é um exemplo maravilhoso de um produtor moderno de bebida alcoólica artesanal", conta Emma Dawson, compradora das bebidas da Marks & Spencer. "Não é uma cópia do uísque escocês; ele fica em uma classe própria. Só colocamos um uísque inglês em nossas prateleiras se sentirmos que ele atinge os nossos altos padrões de qualidade, e isso certamente foi mais que as minhas expectativas."
Nelstrop revela que o 10º aniversário da destilaria em 2016 trará uma nova oportunidade, possibilitando que ele venda um uísque de 10 anos e crie um marco importante. Ele planeja uma reconstrução da marca, colocando menos ênfase no espírito inglês do produto e mais em sua qualidade: "É fácil vender a primeira garrafa. Mas só compram a segunda se gostarem do sabor".


Por The New York Times | Stephen Castle 

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